sexta-feira, 29 de junho de 2012

Alhos e bugalhos

Há muitos anos os meus pais aceitaram a ajuda do pai de um primo meu por afinidade para pintarem a casa de alto a abaixo. O Sr. Ribeiro era especialista na matéria e não deixava cair pingas no chão, coisa que a nós nos fascinava pois, em ocasiões anteriores, o chão, apesar de resguardado com tapetes velhos e jornais, ficava quase tão pintado como os tectos.
Lá nos dividimos entre 'pintores' e ajudantes e calhou a minha mãe ser ajudante do Sr. Ribeiro, que nascera em Baião e transportava com ele toda a cultura e tradição do Norte.
O Sr. Ribeiro era, e ainda é, muito conversador e dono de uma enorme simpatia, mas tinha um sotaque denso e cerrado. Lá do alto do escadote falava, falava, falava e a minha mãe dizia Sim, Sr. Ribeiro, Pois, Sr. Ribeiro e andava neste pingue-pongue, e o homem de pingue-pongue também, sobe e desce do escadote, até que Sr. Ribeiro foi pedir outro ajudante, alegando que a que lhe coubera em sorte não falava a língua dele e ele pedia isto e aquilo e ela que Sim, Sr. Ribeiro e que Pois, Sr. Ribeiro, mas nada de fazer o que ele pedia.
Lembrou-me este episódio a propósito da semana espanhola aqui na biblioteca, que está a terminar.
Quando estive na Universidade em Madrid falei sempre castelhano e agora combináramos que todas as conversações seriam em português, que o José domina bem, apesar do sotaque carregado. 
Pedi às pessoas com quem ele contactou durante estes dias que falassem devagar, pois se assim fosse ele entendia tudo. 
Porém, nem sempre assim aconteceu e a propósito de uma colega que fala à velocidade da luz, a que alia um leve sotaque nortenho, perguntou-me ele se ela era brasileira, pois não percebia metade do que dizia. Desatei a rir pois, há tempos, eu tinha estado com ela em S. Paulo, e tinham-me perguntado se ela era espanhola...
Com uma outra colega, que também fala depressa e com quem eu brinco amiúde, acusando-a de não ouvir o que se lhe pergunta, surgiu a seguinte conversa:
- Vais para França nas férias? Para que cidade?
- Vou na TAP, que não confio noutras companhias
Se tudo isto se passasse num estúdio de televisão eu era aquela pessoa contratada para dar gargalhadas... 

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Boa vizinhança

Depois de ter estado a fazer Erasmus na Universidad Complutense de Madrid, recebo agora um colega de lá, aqui na Biblioteca.
O conhecimento data desde essa altura tendo existido uma empatia mútua desde o primeiro dia. Burocracias assinadas, a permanência na Biblioteca tem sido diária e não há nada de especial a assinalar. 
Ontem disse-me que ia ver o jogo de futebol sozinho, no quarto do hotel, não sei se apelando à minha humanidade ou só para fazer conversa. 
Assim, combinámos assistir à partida juntos - eu percebo de futebol na medida em que sei quem são os jogadores giraços - e escolhemos um bar aqui perto onde, na companhia de uma amiga minha - igualmente sabedora de muita coisa, onde não se inclui o futebol - e no meio de umas tostas de tomate, frango e atum, diante de uma televisão de tamanho considerável, lá fomos assistindo à tortura da bola, consubstanciada em tanto pontapé que levou, de um lado e do outro. Aquilo era raiva ibérica, tudo a dar no esférico com quanta força tinham.
Escusado será dizer que o José era o único espanhol e que ouviu todo o tipo de impropérios dirigidos aos seus conterrâneos, coisa que não o afectou em nada e que não lhe tirou o sentido de humor e a vontade de rir. 
Pela minha parte discuti com a minha amiga os pormenores da equipa adversária sobre os quais tenho efectivo conhecimento, tendo o Iker e o Sérgio levado a palma. 
Com a minha única tatuagem, senti-me uma caloira, uma verdadeira noviça diante do Raul Meireles. 
Amei de paixão o cabelo do Ronaldo que me faz lembrar o de Roger Moore em O Santo: podia mergulhar, saltar de um penhasco, correr no meio de um tufão, mas não havia um cabelo em desalinho, nem um! 
Já o do Fábio Coentrão, visto de costas, é a cara chapada de uma galinha de pescoço pelado, assunto a que se deverá dar atenção, pois os cientistas descobriram que as galinhas da Transilvânia com esta característica são mutantes. Ora, ser mutante é uma maçada que nos manda para a ficção científica e a Transilvânia faz-nos lembrar aquele rapaz, o Vlad (não sei em que equipa jogava) mas consta que era um bocado violento.
Por outro lado, gosto imenso do Rolando que me recorda Roncesvales, Carlos Magno e toda uma elite nobre, aqui na vertente africana. 
Tive imensa pena de não ver jogar Rúben Micael para poder torcer por ele, repetindo uma das sete maravilhas do mundo em termos de casamento de nomes.
O meu amigo José assistia quase em silêncio não fosse ser denunciado como uma espécie de raposa no meio do galinheiro, e no final pagou a conta, por sugestão dele logo ao início: Paga quem ganhar. 
Viva a boa vizinhança.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Segredos aqui ao lado

Sábado foi um dia em cheio: oito horas de pé com uma garrafa de água por alimento, dirão alguns, mas se lhe juntarmos a visita ao Palácio Marquês de Pombal, de manhã, e à Real Quinta de Caxias de tarde, percebe-se que não passei fome alguma.
As visitas, previamente programadas, foram conduzidas por Rodrigo Dias e José Meco, de manhã, e Carlos Beloto e João Pancada Correia de tarde.
Não se dava conta das horas a passar, as palavras fluíam, a informação era basta, os locais maravilhosos. Os tectos do palácio são preciosidades raras que até agora têm sido contempladas pelos alunos do INA, lá instalado, e que já estão em processo de abandono das instalações.
A surpresa da manhã consistiu no facto de a sala destinada pelo INA a servir de biblioteca estar vazia: pela primeira vez em muitos anos pudemos ver as estátuas de Machado de Castro e as belíssimas fontes italianas em mármore de Carrara. A tarde reservava-nos igualmente um momento único: a cascata de Caxias a funcionar em pleno, introduzindo o elemento sonoro naquela arquitectura de jardins, a frescura, o movimento sempre belo da água.
Aos quatro anfitriões nada pode ser apontado: os enquadramentos gerais, o salientar de pormenores  invisíveis ou desconhecidos, a mostra da prática de uma investigação séria e comprometida, com assinatura.
O passado, o presente e o futuro estavam ali de carne e osso, de onde viemos, onde estamos e para onde queremos ir, para onde devemos ir, queiram os deuses perceber que os caminhos são aqueles e mantenham o respeito pelo património.
Real Quinta de Caxias está aberta ao público, fica a dois passos (literalmente!) da estação de comboios, e famílias, pares de namorados, curiosos e amantes de jardins vão assinar em uníssono a afirmar que é belíssima.
Dos quatro especialistas que nos acompanharam ao longo do dia, todos atentos a perguntas do público, todos com linguagem acessível, mas que não ilegitimava o universo da sua especialidade, destaco José Meco, apesar de, repito, considerar cada um dos outros brilhantes e todos com aquela coisa especial, que não sei como lhe hei-de chamar, de saber falar para um público diferenciado.
José Meco segurou as pessoas com um discurso cheio de informação, mas em simultâneo leve, curioso e fascinante. Com imensa frequência mencionava quem tinha descoberto aquele pormenor, quem tinha feito ou desenvolvido aquela investigação, quando e onde estava publicada. Isto é fantástico no mundo da investigação histórica, ou outras: dar o seu a seu dono, fazer os trabalhos de casa cruzando a informação e a sua origem, o que aumenta e solidifica essa mesma informação. 
José Meco falava e cada um de nós interiormente tinha a certeza que ele sabia tudo o que havia para saber. Bem sei que isto nunca se atinge, mas a serenidade e segurança (ainda que a correr pois o tempo corria também) com que falava e a demonstração efectiva do que dizia, foram fabulosos.
Se a Real Quinta de Caxias está aberta ao público, o Palácio não está, e devia estar sem dúvida alguma pois o que contém não pode estar guardado só para visitas esporádicas, é bom demais para tão pouco.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Partir o passado no chão da cozinha

Quando trabalhei em Almada dava-me diariamente com uma mulher que pregava ideias que eu admirava. Dizia a M. – e fazia-o! – que quando percebia que um relacionamento não funcionava, afastava-se, custasse o que lhe custasse. Vi-a a fazer isto com relações amorosas e com pretensos amigos. Apesar de estranho era uma forma de se defender cuja tática nunca incluía ataques de espécie alguma. Se uma amiga se afastava dela, deixava-a ir alegando que não tinha que prender alguém e que, se não queriam a sua companhia, não era ela que a imporia, nunca, sempre com a certeza que os verdadeiros amigos, esses, ficariam, mesmo com aborrecimentos, zangas, interregnos, afastamentos ou silêncios.
Com ela aprendi a dizer às pessoas que o mereciam que as amava, um amor fraterno e incondicional. A nossa amizade mantém-se, embora nos vejamos raramente e já tenhamos tido desentendimentos mas, tal como ela sempre defendeu, como é verdadeira, não morre e, de repente, surge um encontro, telefonemas que não fazemos a outras pessoas, trocam-se palavras que não são meras palavras.
Quando falamos ao telefone parece que não nos vemos desde ontem, tal a força da ligação, da presença, ainda que invisível.
As nossas vidas são cruzadas por inúmeros conhecimentos que vêm e vão, em alguns depositamos, ainda que inconscientemente, grandes esperanças, que passado algum tempo se desvanecem, com tristeza uns, com alívio outros.
Uma destas pessoas em quem depositei esperanças um dia deu-me um queijo. De visita a casa dela mostrou-me o queijo que alguém lhe tinha oferecido, e que ela tinha colocado num prato, adiantando que aquilo iria parar ao lixo pois ninguém lá em casa gostava, e que se eu quisesse, que o levasse. Claro que quero! E assim levei o queijo e o prato onde estava dentro de um saco, comemo-lo e o prato foi lavado, à espera de voltar para o armário onde pertencia.
Porém, hoje por esquecimento, amanhã não sei porquê, o prato foi ficando. Por uma estupidez enorme, aliada a conselhos de pessoas parciais da parte dela, afastámo-nos e não lhe devolvi o prato.
No fim-de-semana, ao puxar uma travessa daquelas que raramente vêm a luz do dia, o prato vem atrás e fica no chão transformado em prato ralado. Varri os cacos e deitei-os fora pensando que já o devia ter feito antes, talvez até de forma propositada, para simbolicamente deitar fora aquele aparente e parente prémio do Trivial feito percurso individual que me causava tristeza cada vez que o via.
Cortar amarras com o passado não é fácil, principalmente se deixamos ligações que fizeram algum sentido ou que, melhor dizendo, nos parecia fazerem sentido.
Por várias vezes discuti o assunto com a M., este concretamente e outros semelhantes, nossos ou de pessoas que conhecíamos, e sempre estranhei o facto de as pessoas não conversarem, pura e simplesmente, cortarem relações, às vezes sem que saibamos de todo porquê. Ela encolhe os ombros e afirma, com ar sapiente, que nunca conhecemos seja quem for. Relembramos os nossos momentos menos bons e reflectimos em como os ultrapassámos. Conto-lhe que uma pessoa me deixou de falar de um dia para outro, sem motivo algum nem resposta ao meu pedido de explicação e que, encontrando-a na rua inesperadamente, meses depois, me cumprimenta, eu respondo com um educado, mas brusco, Boa tarde, e viro costas. Ela diz-me que nem Boa tarde teria gasto, nem um olhar teria perdido para alguém assim.
Conto-lhe a história do prato partido e ela não tem dúvidas: O destino quer limpar a tua vida!
Quer queiramos quer não, é um permanente trapézio, como diz a minha sábia amiga M., nunca sabemos quando nos deixam cair, e mais, corremos sempre o risco de até nos empurrarem.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Música no Metro

Danada por me ter esquecido do livro em casa, só na segunda estação é que percebi que o Metro nos estava a dar música. De início não percebi bem o que era; apurado o ouvido fui transportada para uma das mega produções indianas que faziam furor na minha adolescência.
Não tenho nada contra seja que tipo de música for, embora não goste do tum-tum-tum, gosto de ouvir falar ou cantar em línguas das quais não percebo nada, mas estranhei a escolha.
Numa das músicas, que se vento houvesse nos faria enlear nas pontas dos saris coloridos, entrou na carruagem uma pessoa que trabalha na mesma empresa que eu, ficou a um metro de mim, viu-me e fazendo jus à sua superior educação, não disse bom dia nem boa tarde, o que me fez rir e desatentar na música.
Porém, foi precisamente esse sai e volta a entrar na concentração musical que me fez perceber que a música não era do Metro e provinha sim dos auscultadores de um senhor com idade para ser meu pai, que ia de olhos fechados e sorriso leve na boca a sonhar sabe-se lá com o quê. 
A maravilhosidade do mundo onde o homem estava era de tal forma que no Marquês de Pombal, ao sair quase toda a gente, alguém lhe tocou e o homem abriu os olhos. Primeiro desviou-se para deixar passar, com os olhos ainda a meio gás. Depois fez um ar de espanto, deu um salto fenomenal a olhar lá para fora e disse:
- Já passámos o Jardim Zoológico?
À quatro estações meu amigo... 

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Fogo Concelho do 119 de Coruche

Estou de férias.
Comecei na sexta-feira passada, já de noite.
Sábado fui para Coruche e o entardecer e a noite foram dedicados ao Agrupamento 119 dos Escuteiros (estou a esticar dois dedos, como saudação de lobito, que nunca fui oficialmente, mas que serei sempre interiormente, como inata aprendiz que sou).
O Açude da Agolada é um local paradisíaco, tão belo que parece algures no estrangeiro, como diria alguém que eu conheço.
O acampamento era lá; choveu, os toldos que protegiam o local do jantar ficaram ameaçados, mas não foram perturbados pois o tempo levantou e ficou uma noite de verão inesquecível.
O Fogo Concelho foi magnífico. A fogueira foi feita dentro de água, no açude. Nas margens alinhámo-nos nós, o público, e os escuteiros sentados no chão.
Como disse o Chefe Francisco antes de começar o Fogo Concelho, aquilo a que iríamos assistir, a sucessão de momentos preparados pelos escuteiros, não era um espectáculo. Concordo. Era uma Festa. E que bela Festa...
A noite acabou por cair naquele lago belíssimo, tendo a lua iluminado o local muito antes de se acenderem os focos eléctricos. As margens recortavam-se num rosado escuro e as pessoas deambulavam entre amigos com comida e copos na mão, antes da Festa que nos fez rir, pensar e reflectir.
Os meus sobrinhos estavam lá, é claro! No final, quem quisesse podia dormir no acampamento. Desgraçadamento não sabia e não fui preparada.
No dia seguinte pela manhã apareci lá e dei uma mãozinha, pequenina, muito pequenina, no despedir do acampamento. Antes de terminar, os meus sobrinhos tinham que estar preparados para outros compromissos e tive que os levar a casa a meio da manhã.
Passei com eles metade da semana, até ao feriado, e foi um encher de barriga...
Mas mesmo de barriga cheia, com estes garotos, nunca me sacio... e já tenho saudades...

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Dois livros

Acabei de ler 'O Comprador de Aniversários'. Há muito tempo que não lia nada tão pesado. Foi como se a História se empurrasse a si própria e entrasse toda para dentro daquelas páginas. Imagino um Adolfo García Ortega a respirar com dificuldade, a inspirar com força quando terminou a tarefa, como se o durante lhe tivesse levado o oxigénio ou sustivesse a respiração para evitar inalar zyklon b.
Há uns dias no metro, metida nas páginas do livro, um senhor tocou-me no braço e perguntou-me se estava bem. Disse que sim, com ar desconfiado e perguntei porquê. Está a chorar, respondeu-me o homem.
Agradeci a ajuda, disse que estava bem e fechei o livro. Dois dias antes uma passageira voltou atrás para me chamar a atenção que estávamos na última paragem e que eu devia sair.
Nunca o li ao adormecer com medo dos sonhos. Dos meus e dos sonhos daquelas pessoas, sonhos mortos antes de nascerem, asfixiados por entre a maldade do mundo concentrada em risos e acções sem nome.
Cerca de uma semana antes tinha terminado 'Duas mulheres em Praga'. A passagem do real para a ficção é imperceptível, coisa que aprecio. Juan José Millás  põe-nos a vendar o nosso lado direito, desafiando-nos a fazer coisas que, a mim, me deram vontade de rir de mim própria. Só por isso valeu bem a pena!
'O Comprador de Aniversários' está mediocremente revisto, coisa que noutra leitura me faria deixá-lo de lado. Não foi o caso. Aquelas gralhas eram benéficas porque me permitiam distanciar e sair da narrativa, que nos sufoca. Ao fim de tantos anos, foi a primeira vez que me aconteceu.
Se junto estes dois livros na mesma mensagem é porque têm algo em comum, do ponto de vista do objecto livro: ambos são da Temas e Debates e a tradução, impecável,  é assinada pela mesma pessoa, Jorge Fallorca.
As estórias podem envolver-nos, podemos amá-las, mas o amor perfeito surge na pureza da língua, razão pela qual a tradução é fulcral para não nos desviar do seguimento da ponta da caneta do escritor, ligada à nascente da escrita. Uma má tradução é um cruzamento no meio de uma via rápida; se não nos apercebermos podemos caminhar em sentido contrário ou sermos colhidos por ideias desgovernadas, fáceis e sempre mentirosas.